assim dormem as noites

Preciso desenhar. Pego uma pilha de papéis cortados. Ao abrir uma gaveta, um grampo de cabelos “salta e pede que seja o meu lápis-instrumento” de desenho. Ando pela casa com os papéis e o grampo nas mãos. Chego à cozinha. Limpo o fogão, acendo o gás. Vou à caixa de ferramentas. Com um alicate, esquento partes do grampo de cabelos, canto arredondado e parte ondulada, vermelhas – fogo-vivo. Durante 110 dias seguidos, com um gesto-dia, queimo 110 papéis de 30 x 30 cm. Encosto o grampo-fogo levemente no papel, marco rastros de dias. Em aparentes repousos, cada marca pede outras, em outros papéis… Repito os rituais até acabar a pilha de papéis anteriormente cortados. Não aceito convites para trabalhos fora da cidade onde moro, não posso viajar… O meu compromisso é com os papéis e com os desenhos. A pilha vai pouco a pouco se esvaindo. Quase no final, conto-as e aí já sei quando poderei me ausentar de São Paulo (somente após 110 dias seguidos). Os papéis tão logo queimados, dia-a-dia, são colocados ainda quentes, uns sobre os outros. Ao terminar e ver todos juntos percebo que eles se contaminaram com manchas por calor e superposição. Parece que conversaram entre si nas noites em que dormiam, à espera de desenhos silenciosos de dias-seguintes… Nestas ações, lembro de Mira Schendel, Allan McCollum, Paulo Bruscky, Willie Cole, Elida Tessler, Lurdi Blauth…

Lucimar Bello (2006)