por Cláudia França

… Há, no entanto, uma outra coleção que se distingue das outras. São mapas de plástico colorido, gabaritos vazados da América do Sul, do Brasil, SP e MG – metáforas das peles territoriais e culturais que a constituem como sujeito. Linhas coloridas tensionadas enrolam os gabaritos de maneira que eles se deformam pela pressão. Cada mapa enrolado é signo de tempo “paciente” na convivência silenciosa do “entre-dois” (mão-mapa, mãe-filha) que se desdobra para outras cumplicidades. Encantei-me quando vi um deles, o mapa do continente que se comprimiu e deu o nariz mineiro. Mas encantei-me também ao descobrir que foram feitos mais “mapas” do que os muitos que foram expostos. Cada um dos “excedentes” não foi descarte, estoque, souvenir ou refill, e sim dádiva da artista para cada um de nós que constituímos naqueles dias de interlocuções e da montagem da exposição, naqueles dias de convívio – uma rede de inter-subjetividades, a partir de coleções de matérias tão simples, tão próximas. Como se sua presença colorida se enrolasse na vivência de cada um de nós, constituindo uma nova cartografia.

Nesse segundo momento de SamPer, cartografias cidadianas: dos Alpes ao Ilha de Capri a questão “inter-subjetividade” se internaliza para o processo de criação – de uma exposição,  instalação ou objeto, ou mesmo de auto-criação – ou de todos esses processos imiscuídos. Nessa nova aventura em São Paulo, a artista se afeta pela ereção de um edifício construído ao lado de seu apartamento. Em contraponto ao esqueleto visível cujos ossos chacoalham em alto som percussivo, a artista se mune de peles para, a cada dia, vivenciar uma situação de estranhamento. Por quase todo o processo de construção do Ilha de Capri, ela o olha sem ser vista. A situação de janela, a máquina fotográfica, o olhar de Lucimar, o corpo de Alpes – são muxarabis que a resguardam de um contato direto com o Outro.

Na situação samperiana anterior, a convivência do entre-dois marcava a realização do próprio trabalho, cuja instalação no espaço da galeria desdobrava o sentido da coletividade. Agora as experiências de interlocução se expandem para o “entre-vários”, desde a concepção de cada unidade imagética, sonora ou objetual do que constitui o fluxo de Alpes à nova “ilha”. Aqui cabe também uma pequena reflexão acerca desse “socius” que instaura um lugar dentro de outro.

Podemos pensar que o diário de Lucimar é gestado dentro de sua “torre”, não de marfim, mas ainda assim uma torre. Antes de tudo, uma torre é um edifício e um edifício é uma arquitetura. Do alto de sua torre panóptica, Bello vê um atelier escancarado, dezenas de pessoas circundando, fazendo barulho, dormindo, comendo, trocando informações, trabalhando em um mesmo objeto. Mesmo que sejam todos a mão-de-obra que realiza a idéia de outrem, esta idéia também passou por uma mínima interlocução, dentro do escritório de arquitetura, na sala de reuniões do cliente e em outras instâncias, até tomar a forma final de “casa do vizinho”. Enfim: é uma questão histórica, em um edifício em obra pode-se ver uma formação micro-social, onde os membros têm papéis mais ou menos definidos de atuação, podendo constituir vínculos afetivos.

É na solidão que Bello constrói, no olhar para o Ilha de Capri, o diário de Alpes, mas seu olhar reflexivo já se contamina das alteridades em andamento: o corpo do edifício e o corpo da artista, a solidão de seu diário e um outro modo de operação, e aquele socius lá embaixo, subindo um pouco a cada dia. Uma coleção de imagens assim construída passa a ser o substrato para outros trabalhos, inter-subjetivamente tramados.

O SamPer de agora é o retorno da experiência de atelier fora da torre e nômade, uma experiência-síntese dos trajetos pelos quais as imagens já transitaram. Em cada ponto de chegada e partida da coleção de imagens, uma relação inter-subjetiva fora ativada: na produção sonora, na produção videográfica, na produção objetual, na produção textual – todas se reúnem na produção instalacional alusiva a um estranhamento vivenciado, na solidão do dia a dia, há um tempo atrás, em Perdizes.

O Ilha de Capri é uma verticalidade direta que rompe a paisagem de sua vizinhança. O olhar de Lucimar para ele se compõe de pequenas horizontalidades – pequenos deslocamentos entre um cômodo e outro do apartamento fazem-na enxergá-lo em vários ângulos. Assim, para a verticalidade que se impõe, minúsculos trajetos horizontais a espreitam. Nesta instalação, se ressalta a profundidade vertical pela possibilidade que o espaço nos dá. O MUnA se verticaliza em espiral, e o espectador teria, em seu próprio percurso, uma junção da horizontal e da vertical, sintetizando, em seu próprio corpo, as direções de movimento de Lucimar Bello e do Ilha de Capri… Assim, percebo as várias maneiras em que o encontro com a alteridade ou a questão inter-subjetividade fora posta nestas exposições: os interlocutores, o campo de obras, o atelier, o corpo de Lucimar, a torre, a ilha, as cidades, o campo de obras dentro do museu. Por fim, SamPer 1 e 2 são inter-subjetivas entre si, podendo ser pensadas como o lado de dentro e o lado de fora de uma mesma luva. Luva com a qual Bello se vestiu para tocar as sístoles e diástoles do tempo.

Cláudia França

Uberlândia, setembro de 2006 a abril de 2007